Grupo Delírio retorna ao universo de Kafka em uma fábula sombria sobre a infância do escritor, atormentada pelo medo e a culpa
Ninguém é inocente na infância sombria e assustada do pequeno Franz Kafka, reinventada sobre o palco pelo Grupo Delírio Cia. de Teatro, na peça Kafka – Escrever É um Sono Mais Profundo do Que a Morte. O dramaturgo e diretor Edson Bueno se reencontra com o universo do escritor, pelo qual havia adentrado no espetáculo A Metamorfose. Investe em notas biográficas e alusões a obras como O Processo, em uma fábula negra onde convivem elementos infantis e de terror.
Fotos: Daniel Castallano/Gazeta do Povo
Os atores Guilherme Fernandes e Diego Marchioro assombram a imaginação do pequeno Kafka (Marcel Gritten)
ASSASSINO - Importa se eu matei ou não aquela garota de olhos verdes, cabelos escuros, boca fina e orelhas um pouco maiores do que o normal? Importa que eu ‘pareço’ o assassino, importa que a senhora Hagnild viu alguém que se parece ‘demais’ comigo, entrando num beco escuro com Ottla. Então, pelo menos para o meu conforto, melhor seria se eu aceitasse de uma vez ser o assassino, mesmo não tendo cometido o assassinato, porque a dor da condenação será infinitamente menor (...).
FRANZ (Decididamente para o Assassino) - O que é um homem inocente? É um homem que tem um excelente advogado de defesa, só isso. E um culpado? O contrário, só isso.
Trecho da peça Kafka – Escrever É um Sono Mais Profundo do Que a Morte, de Edson Bueno.
A reportagem da Gazeta do Povo acompanhou o primeiro ensaio realizado no Teatro Novelas Curitibanas, onde a peça entra em cartaz amanhã. Ainda sem o cenário completo – uma cozinha que serve de refúgio ao menino e aos personagens saídos de sua mente. Figurinos pesados e escuros compunham com a maquiagem de olhos avermelhados e olheiras marcadas a caracterização da crueldade que impressionava aquele escritor, ainda envolto em suas primeiras letras.
A montagem busca uma linguagem expressionista, inspirada no humor de Tim Burton, cineasta de Sweeney Todd – O Barbeiro Demoníaco da Rua Fleet. Concentra-se nessa infância “que poderia ter sido” e em como a imaginação do pequeno Franz refletia um mundo áspero que o impressionava. Edson Bueno se veste com as roupas do patriarca terrivelmente prático, que odiava a escrita – transformado em personagem por Kafka na Carta ao Pai. A atriz Regina Bastos empresta a doçura da voz à mãe, em quem o menino encontra algum consolo.
Os outros personagens são frutos da invenção do menino. Um assassino (Guilherme Fernandes) quase saído dos corredores labirínticos de O Processo, e duas figuras macabras que infernizam Franz, vividas por Diego Marchioro e Martina Gallarza. “Meu prazer são essas três figurinhas em volta dele”, conta o diretor, citando os seres que atormentam a consciência do protagonista. “Temos esse exercício da imaginação nos perseguindo o tempo inteiro, tem hora que é quase uma assombração”, diz.
O grupo se permitiu recuar em direção a um teatro com quarta parede, depois da experiência de se misturar ao público em O Evangelho Segundo São Mateus. Edson seguiu sua intuição: manter-se fechado na fábula. Ele ouviu de Regina Bastos que a dramaturgia da nova peça se estrutura como um roteiro cinematográfico, e pensa de fato em levar a história ao cinema. Sabe também que retornará à obra ou ao personagem de Kafka outras vezes. “Quando se começa a avançar no universo de um autor, ele fica pulsando dentro de você”.
No espetáculo, o que pulsa é o sentimento de culpa. Fora daquela cozinha onde o menino se abriga, judeus são perseguidos por checos e por alemães. Kafka, de família não-ortodoxa, mal se sentia judeu, mesmo assim vivia em um gueto sob a sensação de aprisionamento, atado às tradições de sua cultura. “Nós temos isso. Mesmo se dizendo ateu, ninguém pisa sobre o crucifixo”, observa Bueno. Ele se diz ateu. “Mas o mundo não é”.
Serviço
Kafka – Escrever É um Sono Mais Profundo do Que a Morte. Teatro Novelas Curitibanas (R. Presidente Carlos Cavalcanti, 1.222), (41) 3321-3358. Texto e direção de Edson Bueno. Com Regina Bastos, Marcel Gritten, Diego Marchioro, MartinaGallarza e Guilherme Fernandes. Quinta-feira a sábado às 21 horas e domingo às 19 horas. Ingresso é uma lata de leite em pó.
Fonte: gazeta do Povo, Caderno G, publicado em 10/06/2009
Jornalista: Luciana Romagnolli
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